A selva de Esmelhe - Alvaro Cunqueiro
Quiçá melhor que
dizê-la fora pintá-la, a selva de Esmelhe, que cai a mão direita, vindo para
este reino pola banda de Leão. Ele, o caminho que eu levei deica[1] ao
campo dos Trobos, adentra-se rubindo[2]
volta a volta pola fraga de Eirís, que é tão mesta[3]: o
caminho vai um pouco a rentes do rio, e quando ganha o chão, onde chamam
Paradas, mete-se por entre os lamegueiros até aonde dizem Pontigo, que é uma
ponte baixa de madeira, na que mui gostoso é de ouvir o trote curto dos cavalos
dos viageiros que vão e vêm, caminho de Belvís
Os moinhos do Pontigo
são agora duas moreias de pedra moura, nas que a hedra encalha e medra, pero[4] eu
lembro-me ainda de quando moíam o trigo valeco[5] e
o centeio das chairas, e havia maceiros ao longo das presas; o vento atirava
maçãs à auga[6], e sempre havia uma dúzia
delas, verdes ou coradas, bailando na escuma espessa e amarela, cabo[7] à
enrelha[8]
das canles[9].
Sempre ventea na carvalheira das Mouras, tão fusquenlha[10],
e o caminho tem presa em passá-la e em chegar à aberta camposa de Miranda, às
longas gândaras, às terras de folgado, às branhas[11]
de El-Rei...
Desde Miranda vê-se
Esmelhe todo arredor, o castelo de Belvís, a fraga da Serpe, a lagoa dos Cabos,
e de dia, a seu carom, o fume das ferrarias do Vilar. Pola noite, desde
Miranda, eu punha-me a olhar como se acendiam as luzes de Belvís nas outas[12] e
aparelhadas torres, e em comparança com elas, como pousadas no chão, as luzes
de Vilar: quando corria vento de Meira, eu tinha-me por que ouvia as badaladas
do maço dos ferreiros. Desde Miranda vê-se tudo o chão
de Quintais deica[13] ao
Castro, e as centeeiras darem-se em ondas, como o mar, ao amor da brisa, e o ir
e vir das mulheres à fonte do Couso. Sempre me lembrarei da cerca da eira, de
loureiro romão, tão paxareiro[14], na que
tantas ninhadas velei, e da figueira ramona, tão viciosa[15], ao pé
da casa, onde ao palheiro grande. Miranda era a pousada de dom Merlin.
Eu dormia no faiado,
numa câmara estreita, que tinha um ventano[16]
que quadrava mesmo em riba do catre. Tomei gosto, pola noitinha, de rubir-me a
este, e estar-me uma hora debruçado. E ele era polas luzes. Em Esmelhe, na
noite, tudo se fazia com luzes. Já não digo as luzes de Belvis, que bem as
mirava rubir[17] e baixar, como paxaros[18]
acesos, polas fiestras[19]
das torres ambas; por vezes, todo Belvís quedava às escuras, e a pouco,
acendia-se uma luz pequeninha, como o olho dum moucho[20],
no balcão da portada, e essa luz corria polo castelo, e eu mirava como passava
duma câmara noutra, seguindo-a quando se derramava e guinhava[21]
polas fiestras e fiteiras, e de súpeto[22]
acenava umas senhas no outo[23]
das ameias. E eu sabia que era o farol[24]
do anão do castelo, que fazia a derradeira ronda. Já não digo tampouco as luzes
do Vilar, com as que brincavam as polas das abidueiras[25]. Falo
das luzes que andavam polos caminhos, polo caminho real, vindo de Meira, e polo
caminho de Quintais, e polo caminho velho, que se afoga na lagoa dos Cabos, e
também pola lagoa. E corriam e cruzavam-se, e de quando em vezes[26]
juntavam-se três ou quatro e ele era como uma pequena fogueira no meio da
noite. Cavalos galopando deviam levá-las, tal corriam. E se alguma tomava o
caminho de Miranda, e vinha cara a mim[27],
e até semelhava, tão viva vinha, que assobiava, prendia o medo em mim como
alfinete no alfineteiro, e sem despir-me metia-me no catre e tapava-me a
cachola[28]
com a manta: uma manta a faixas verdes, que por ambos lados tinha escrito em
letras vermelhas: DAVID. Eu tinha, em verdade, aquele David nomeado por meu
defensor, e até lhe rezava. Pero penso agora que tais medos gostavam-me[29]...
À alba vinham ver-me, fazendo ainda parte dos meus sonhos, os sinos de Quintais
e o arrolo das pombas no bico do telhado. Uma manhã de sega foi quando vi na
lagoa o barco veleiro, e outra de outono quando vi no outo[30]
do Castro a trave de ouro. O inverno é longo, longo, em Esmelhe, e agás[31]
que caia uma lua de geadas, tudo ele é chuva e neve. Pero o verão e doce, e
também outonada.
Às vegadas[32], por
fazer festa, o senhor Merlim saia à eira, e numa taça de cristal cheia de auga
verquia duas ou três gotas do licor que ele chamava “dos países”, e sorrindo,
com aquele aberto sorriso que lhe enchia a franca faciana[33] como
enche o sol a manhã, perguntava-nos de que cor queriamos ver o mundo, e sempre
que a mim me tocava responder, eu dizia que de azul, e então dom Merlim botava
a auga, ao ar, e por um segundo o mundo todo, Esmelhe todo arredor, as brancas
torres de Belvís, as pombas e o cão Ney, os roxos[34] cabelos
de Manoelinha, a branca barba de mi-amo, o cavalo tordo[35], as
bidueiras de Quintais e o tojo da coroa do Castro, tudo era uma longa nuvem
azul que pouco a pouco se esvaia. O senhor Merlim sorria mentres secava a copa
cum pano mouro. Esmelhe, selva longa e antiga, na memória levo-a eu de azul
pintada, como se um enorme e morno luar pousara, num repente, na terra.
[1]
até
[2]
subindo
[3] espessa,
densa
[4]
mas
[5]
próprio do vale
[6]
água
[7]
junto
[8]
remoinho
[9]
canos
[10]
Rude, indômita
[11]
terrenos ou prados mui húmidos ou alagados
[12]
altas
[13]
até
[14]
passareiro
[15]
crescida desmesuradamente
[16]
janela pequena
[17]
subir
[18]
pássaro
[19]
janelas
[20]
mocho
[21]
escapava, morria
[22]
repentinamente
[23]
alto
[24]
lanterna
[25]
vidoeiros
[26]
De vez em quando
[27]
na minha direção
[28]
cabeça
[29] eu
gostava de tais medos
[30]
alto
[31]
exceto
[32]
por vezes
[33]
cara
[34]
vermelhos