Sunday 17 November 2013

APOCALIPSE

Capítulo 13

 
 
1  E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfémia.

 2  E a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande poderio.

 3  E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.

 4  E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?

 5  E foi-lhe dada uma boca para proferir grandes coisas e blasfémias; e deu-se-lhe poder para continuar por quarenta e dois meses.

 6  E abriu a sua boca em blasfémias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.

 7  E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua e nação.

 8  E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.

 9  Se alguém tem ouvidos ouça.

10 Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá: se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto. Aqui está a paciência e a fé dos santos.

11 E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro; e falava como o dragão.

12 E exerce todo o poder da primeira besta na sua presença, e faz que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta, cuja chaga mortal fora curada.

13 E faz grandes sinais, de maneira que até fogo faz descer do céu à terra, à vista dos homens.

14 E engana os que habitam na terra com sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta, dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida da espada e vivia.

15 E foi-lhe concedido que desse espírito à imagem da besta, para que também a imagem da besta falasse, e fizesse que fossem mortos todos os que não adorassem a imagem da besta.

16 E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas;

17 Para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome.

18 Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.

Saturday 12 October 2013


A selva de Esmelhe - Alvaro Cunqueiro


 

Quiçá melhor que dizê-la fora pintá-la, a selva de Esmelhe, que cai a mão direita, vindo para este reino pola banda de Leão. Ele, o caminho que eu levei deica[1] ao campo dos Trobos, adentra-se rubindo[2] volta a volta pola fraga de Eirís, que é tão mesta[3]: o caminho vai um pouco a rentes do rio, e quando ganha o chão, onde chamam Paradas, mete-se por entre os lamegueiros até aonde dizem Pontigo, que é uma ponte baixa de madeira, na que mui gostoso é de ouvir o trote curto dos cavalos dos viageiros que vão e vêm, caminho de Belvís

Os moinhos do Pontigo são agora duas moreias de pedra moura, nas que a hedra encalha e medra, pero[4] eu lembro-me ainda de quando moíam o trigo valeco[5] e o centeio das chairas, e havia maceiros ao longo das presas; o vento atirava maçãs à auga[6], e sempre havia uma dúzia delas, verdes ou coradas, bailando na escuma espessa e amarela, cabo[7] à enrelha[8] das canles[9]. Sempre ventea na carvalheira das Mouras, tão fusquenlha[10], e o caminho tem presa em passá-la e em chegar à aberta camposa de Miranda, às longas gândaras, às terras de folgado, às branhas[11] de El-Rei...

Desde Miranda vê-se Esmelhe todo arredor, o castelo de Belvís, a fraga da Serpe, a lagoa dos Cabos, e de dia, a seu carom, o fume das ferrarias do Vilar. Pola noite, desde Miranda, eu punha-me a olhar como se acendiam as luzes de Belvís nas outas[12] e aparelhadas torres, e em comparança com elas, como pousadas no chão, as luzes de Vilar: quando corria vento de Meira, eu tinha-me por que ouvia as badaladas do maço dos ferreiros. Desde Miranda vê-se tudo o chão de Quintais deica[13] ao Castro, e as centeeiras darem-se em ondas, como o mar, ao amor da brisa, e o ir e vir das mulheres à fonte do Couso. Sempre me lembrarei da cerca da eira, de loureiro romão, tão paxareiro[14], na que tantas ninhadas velei, e da figueira ramona, tão viciosa[15], ao pé da casa, onde ao palheiro grande. Miranda era a pousada de dom Merlin.

Eu dormia no faiado, numa câmara estreita, que tinha um ventano[16] que quadrava mesmo em riba do catre. Tomei gosto, pola noitinha, de rubir-me a este, e estar-me uma hora debruçado. E ele era polas luzes. Em Esmelhe, na noite, tudo se fazia com luzes. Já não digo as luzes de Belvis, que bem as mirava rubir[17] e baixar, como paxaros[18] acesos, polas fiestras[19] das torres ambas; por vezes, todo Belvís quedava às escuras, e a pouco, acendia-se uma luz pequeninha, como o olho dum moucho[20], no balcão da portada, e essa luz corria polo castelo, e eu mirava como passava duma câmara noutra, seguindo-a quando se derramava e guinhava[21] polas fiestras e fiteiras, e de súpeto[22] acenava umas senhas no outo[23] das ameias. E eu sabia que era o farol[24] do anão do castelo, que fazia a derradeira ronda. Já não digo tampouco as luzes do Vilar, com as que brincavam as polas das abidueiras[25]. Falo das luzes que andavam polos caminhos, polo caminho real, vindo de Meira, e polo caminho de Quintais, e polo caminho velho, que se afoga na lagoa dos Cabos, e também pola lagoa. E corriam e cruzavam-se, e de quando em vezes[26] juntavam-se três ou quatro e ele era como uma pequena fogueira no meio da noite. Cavalos galopando deviam levá-las, tal corriam. E se alguma tomava o caminho de Miranda, e vinha cara a mim[27], e até semelhava, tão viva vinha, que assobiava, prendia o medo em mim como alfinete no alfineteiro, e sem despir-me metia-me no catre e tapava-me a cachola[28] com a manta: uma manta a faixas verdes, que por ambos lados tinha escrito em letras vermelhas: DAVID. Eu tinha, em verdade, aquele David nomeado por meu defensor, e até lhe rezava. Pero penso agora que tais medos gostavam-me[29]... À alba vinham ver-me, fazendo ainda parte dos meus sonhos, os sinos de Quintais e o arrolo das pombas no bico do telhado. Uma manhã de sega foi quando vi na lagoa o barco veleiro, e outra de outono quando vi no outo[30] do Castro a trave de ouro. O inverno é longo, longo, em Esmelhe, e agás[31] que caia uma lua de geadas, tudo ele é chuva e neve. Pero o verão e doce, e também outonada.

 

Às vegadas[32], por fazer festa, o senhor Merlim saia à eira, e numa taça de cristal cheia de auga verquia duas ou três gotas do licor que ele chamava “dos países”, e sorrindo, com aquele aberto sorriso que lhe enchia a franca faciana[33] como enche o sol a manhã, perguntava-nos de que cor queriamos ver o mundo, e sempre que a mim me tocava responder, eu dizia que de azul, e então dom Merlim botava a auga, ao ar, e por um segundo o mundo todo, Esmelhe todo arredor, as brancas torres de Belvís, as pombas e o cão Ney, os roxos[34] cabelos de Manoelinha, a branca barba de mi-amo, o cavalo tordo[35], as bidueiras de Quintais e o tojo da coroa do Castro, tudo era uma longa nuvem azul que pouco a pouco se esvaia. O senhor Merlim sorria mentres secava a copa cum pano mouro. Esmelhe, selva longa e antiga, na memória levo-a eu de azul pintada, como se um enorme e morno luar pousara, num repente, na terra.




[1] até
[2] subindo
[3] espessa, densa
[4] mas
[5] próprio do vale
[6] água
[7] junto
[8] remoinho
[9] canos
[10] Rude, indômita
[11] terrenos ou prados mui húmidos ou alagados
[12] altas
[13] até
[14] passareiro
[15] crescida desmesuradamente
[16] janela pequena
[17] subir
[18] pássaro
[19] janelas
[20] mocho
[21] escapava, morria
[22] repentinamente
[23] alto
[24] lanterna
[25] vidoeiros
[26] De vez em quando
[27] na minha direção
[28] cabeça
[29] eu gostava de tais medos
[30] alto
[31] exceto
[32] por vezes
[33] cara
[34] vermelhos
[35] branco e preto