Sunday 11 November 2012

A carom da natureza - Nos - Castelão



É no intre[1] em que a terra, para se dormir, vai virando as costas à luz, e o fume das telhas, mesto e leitoso, vai-se espargindo no fundo do vale. Não é cousa do outro mundo pintar o que veem os olhos, que serão comestos polos vermes; mas na paisagem há mais cousas que fitar, pois naquele moinho cantareiro dous namorados dão-se o primeiro bico[2] e naquele paço do castinheiro seco uivam os cães.

Do adro duma Igreja olhamos o vale afundido na chuva. A auga[3] que cai a fio sossega o fume azul contra as telhas brilhantes duma choça. Os caminhos estão cobertos de lama e um vendedor de cobertores passa cavaleiro na sua besta ferrada. Velaí[4] o quadro dum pintor; pero ainda há mais na paisagem, pois tocam a morto no campanário da Igreja e o som é tão amargurado como se batessem o sino com a mesma cabeça do morto e não adivinhamos em que casa do lugar há desgraça porque todas, todas, estão tristes.

Noite de luar. Na beira duma encruzilhada de lenda um cruzeiro tem a rentes[5] de si a mesa de pedra onde pousam os mortos para botar-lhes o responso; por entre os pinheiros amostra-se a ria maina; a lua está pendurada da pola[6] dum pinheiro. O pintor tem que evocar algo mais que uma visão, pois na mesa de pedra do cruzeiro, aquela mesma tardinha, pousaram o corpo morto dum rapaz que veio do serviço da tropa; por aquela congostra vai um estudante de crego[7] cavilando na moça do pano vermelho que lhe roubou a vocação. E ao longe cantam um alalá[8].

Manhancinha de domingo. Os montes de longe têm azures[9] de Patinir[10]; as giestas e os tojos põem as suas pintinhas amarelas na divina sinfonia verde da paisagem. Moitas cousas mais tem a paisagem para um artista, pois numa pola daquela macieira o melro de Guerra Junqueiro[11], “luzidio e jovial“ ainda, aguarda polo abade da aldeia para dar-lhe os “bons dias“; choveu ontem; os sinos da igreja repenicam uma moinheira e polos carreiros das veigas dacolá em baixo as formiguinhas negras e vermelhas vêm à missa.
 
O tempo engalanou com uma tona de ouro e prata o velho castelo feudal; os escravos do fisco sacham o milho nas leiras; entre os salgueiros sombriços do fundo do vale avista-se a foz do rio. O sol bate no lombo da terra. Tudo está disposto para pintar, porque tudo é regalia[12] dos olhos; pero na paisagem há mais. Hoje é véspera de São João, arrecende[13] a colo[14] de nai[15], cantam os grilos e o vento morno traz-nos de longe a som de um bombardino. Amanhã lavar-nos-emos com hervas arrecendentes.

Anoitecia. A silhueta negra dum pinho debuxava-se no azul-escuro do céu. Todos sabedes que na primavera os pinhos botam milheiros de velas, colhendo assim o aspeto de candeeiros gigantes. Quantas vezes sentimos desejos de acender as velas dos pinhos! Pois bem; perto do meu pinho acertou a passar o Viático aldeão (o crego, dous rapazes, quatro mulherinhas que vão pregando) e, ó milagre! o irmão pinho, sentindo o momento religioso e em homenagem à Sagrada Forma, acendeu as suas velas, que estiveram acesas entre mentres o Viático não se perdeu na revolta do caminho.

Um dia de Natal, olhando uma paisagem que imitava um presépio, decatei-me[16] de que há mais formosura nas florezinhas dos campos que nas flores de jardim. As florezinhas ventureiras que nascem nos campos parecem criadas polo Bosco ou por Breughel o velho, enquanto as flores foulentas[17] de jardim semelham os encoiros amanteigados de Rubens. Desde então eu quis ser um ventureiro das letras.


[1] Instante, momento
[2] Beijo
[3] Água
[4] Eis
[5] Arrimado, encostado
[6] Ramo
[7] Cura
[8] Canto popular galego que se caracteriza pola sua melancolia e languidez
[9] Azuis
[10] Pintor holandês
[11] Escritor português, que escreveu “O merlo”
[12] Abundância
[13] Cheira bem
[14] Regaço
[15] Mãe
[16] Apercebi-me, dei conta
[17] Poeirentas