É no intre[1]
em que a terra, para se dormir, vai virando as costas à luz, e o fume das
telhas, mesto e leitoso, vai-se espargindo no fundo do vale. Não é cousa do
outro mundo pintar o que veem os olhos, que serão comestos polos vermes; mas na
paisagem há mais cousas que fitar, pois naquele moinho cantareiro dous
namorados dão-se o primeiro bico[2] e
naquele paço do castinheiro seco uivam os cães.
Do adro duma Igreja olhamos o vale afundido na chuva. A auga[3]
que cai a fio sossega o fume azul contra as telhas brilhantes duma choça. Os
caminhos estão cobertos de lama e um vendedor de cobertores passa cavaleiro na
sua besta ferrada. Velaí[4] o
quadro dum pintor; pero ainda há mais na paisagem, pois tocam a morto no
campanário da Igreja e o som é tão amargurado como se batessem o sino com a
mesma cabeça do morto e não adivinhamos em que casa do lugar há desgraça porque
todas, todas, estão tristes.
Noite de luar. Na beira duma encruzilhada de lenda um cruzeiro tem a rentes[5] de
si a mesa de pedra onde pousam os mortos para botar-lhes o responso; por entre
os pinheiros amostra-se a ria maina; a lua está pendurada da pola[6]
dum pinheiro. O pintor tem que evocar algo mais que uma visão, pois na mesa de
pedra do cruzeiro, aquela mesma tardinha, pousaram o corpo morto dum rapaz que
veio do serviço da tropa; por aquela congostra vai um estudante de crego[7]
cavilando na moça do pano vermelho que lhe roubou a vocação. E ao longe cantam
um alalá[8].
Manhancinha de domingo. Os montes de longe têm azures[9]
de Patinir[10]; as
giestas e os tojos põem as suas pintinhas amarelas na divina sinfonia verde da
paisagem. Moitas cousas mais tem a paisagem para um artista, pois numa pola
daquela macieira o melro de Guerra Junqueiro[11],
“luzidio e jovial“ ainda, aguarda polo abade da aldeia para dar-lhe os “bons
dias“; choveu ontem; os sinos da igreja repenicam uma moinheira e polos
carreiros das veigas dacolá em baixo as formiguinhas negras e vermelhas vêm à
missa.
O tempo engalanou com uma tona de ouro e prata o velho castelo feudal; os
escravos do fisco sacham o milho nas leiras; entre os salgueiros sombriços do
fundo do vale avista-se a foz do rio. O sol bate no lombo da terra. Tudo está
disposto para pintar, porque tudo é regalia[12]
dos olhos; pero na paisagem há mais. Hoje é véspera de São João, arrecende[13] a
colo[14]
de nai[15],
cantam os grilos e o vento morno traz-nos de longe a som de um bombardino. Amanhã
lavar-nos-emos com hervas arrecendentes.
Anoitecia. A silhueta negra
dum pinho debuxava-se no azul-escuro do céu. Todos sabedes que na primavera os
pinhos botam milheiros de velas, colhendo assim o aspeto de candeeiros
gigantes. Quantas vezes sentimos desejos de acender as velas dos pinhos! Pois
bem; perto do meu pinho acertou a passar o Viático aldeão (o crego, dous
rapazes, quatro mulherinhas que vão pregando) e, ó milagre! o irmão pinho,
sentindo o momento religioso e em homenagem à Sagrada Forma, acendeu as suas
velas, que estiveram acesas entre mentres o Viático não se perdeu na revolta do
caminho.
Um dia de Natal, olhando uma paisagem que imitava um presépio, decatei-me[16]
de que há mais formosura nas florezinhas dos campos que nas flores de jardim. As
florezinhas ventureiras que nascem nos campos parecem criadas polo Bosco ou por
Breughel o velho, enquanto as flores foulentas[17]
de jardim semelham os encoiros amanteigados de Rubens. Desde então eu quis ser
um ventureiro das letras.
[1] Instante, momento
[2] Beijo
[3] Água
[4] Eis
[5] Arrimado, encostado
[6] Ramo
[7] Cura
[8] Canto popular galego que se caracteriza
pola sua melancolia e languidez
[9] Azuis
[10] Pintor holandês
[11] Escritor português, que escreveu “O merlo”
[12]
Abundância
[13]
Cheira bem
[14]
Regaço
[15] Mãe
[16]
Apercebi-me, dei conta
[17]
Poeirentas